sábado, 3 de dezembro de 2016

Mais um ano em minha vida

Passei um sábado desconectada. Era o dia do meu aniversário e decidi amanhecer em um sarau de poesia e anoitecer em um samba. 

Foi um dia cheio e feliz, que me deixou a certeza de que a vida, mesmo quando nos surpreende com tristezas, como as que experimentamos na semana passada, vale a pena. 

Vale mais ainda quando contamos com o carinho de tantos amigos, que deixaram, por aqui, suas boas vibrações. Sou toda gratidão por ter vocês em minha vida.


PS: O poema da foto eu ganhei de presente da escritora cubana Teresa Cárdenas, de quem falarei adiante. Por enquanto, digo apenas que ela transformou em poesia a dor de seu povo durante o sempre imoral embargo a Cuba, que, nos anos 90, teve efeitos ainda mais cruéis. Como disse, em sua dedicatória, esse poema (clique na foto para lê-lo) define o tempo. O mesmo tempo que me permitiu chegar até aqui.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O espanto diante da morte e a necessidade de encará-la

Quando decidi criar esse blog, em 2008, tínhamos duas gatas em casa. A minha e a do Cadoca. Isolda e Guin. Elas não se davam, ou melhor se odiavam, evitando-se todo o dia. A convivência entre as duas fora forçada por conta da nossa união, que nos fez juntar não apenas os trapos, mas, sobretudo, os gatos. Tristão, companheiro da Isolda, desde o nascimento, já havia partido quando criei o Gato de Sofá, inspirada na experiência de ler com gatos passeando seus rabos na frente dos livros ou deitados em meu colo, no sofá. Era um gato branco, gordo, com uma alma de Garfield do bem. Isolda era uma gata preta, magrinha e serelepe, cheia de personalidade. Gueen era uma dama. Uma siamesa petit, toda meiga e mimada, que se ressentiu quase de morte com a invasão de sua casa. Tristão, nos primeiros dias, a assediou e se exibiu como pode, marcando território - que ignorou ser o lar do novo casal - com seu xixi fedorento. Isolda, certamente com ciúmes da atenção de seu companheiro para aquelazinha, tomou-se de uma antipatia sem fim pela Gueen, que também não a apreciava. Tristão se foi ainda jovem, vítima de uma insuficiência renal, cumprindo o destino trágico do nome que escolhi por estar encantada com aquela poderosa história de amor. Ele partiu e as duas ficaram para a quase eternidade, sem nunca se reconciliar. Passaram anos pela casa ignorando uma a outra, até que a Gueen também nos deixou, logo após completar duas décadas. Foi a vez da Isolda reinar sozinha, em meu quartinho de trabalho, onde ocupou por anos a única poltrona do ambiente, até que, semana passada, também com duas décadas de vida, partiu. A casa em que, nos últimos 20 anos, o ar misturava-se com com gatos, fazendo-se sentir na fricção com a nossa perna, de repente ficou oca. O ar agora é rarefeito e não opõe resistência ao nosso caminhar. O sofá está vazio, o cantinho perto do tanque, onde foi por anos o banheiro e o refeitório dos felinos, ficou livre e nós nos deparamos mais uma vez com a morte. Apesar de anunciada pela idade da vítima, a morte sempre nos causa espanto. A tristeza se abateu de um jeito peculiar em cada um de nós. Eu, que passava a maior parte de meu tempo, velando o sono da Isolda, mesmo sem me dar conta disso, intuí a morte e, no meio da semana, comentei com o Pedro sobre o estado da gata. Meu filho veio até meu quartinho de trabalho, aonde ela passava quase todas as suas horas, e aqui ficou pelo tempo que desejou. A vida seguiu e ele, com o vigor de um adolescente, correu atrás dela. Os dias se passaram e a morte se anunciava cada vez mais perto. Assustada e desejosa em dar uma boa hora para a minha gatinha, companheira de tantos anos, decidi levá-la à clínica veterinária que sempre a atendeu. Mas antes avisei ao Antônio sobre a possibilidade de ela não voltar para casa. Dei corpo em meu aviso ao temor que me assombrava há tempos de um dos meus filhos a encontrarem morta pela casa. Meu pequeno, que nunca esteve diante da morte, veio ao quartinho e repetiu o ritual de despedida feito dias antes pelo irmão. Depois de alguns minutos, entrou na sala com os olhos e o nariz congestionados de tanto chorar. Sentei-o em meu colo, do jeito que ainda é possível, e, com a ajuda do Cadoca, expliquei para ele que o fim é um dado da vida, que não temos como fugir disso e que precismos aceitar as despedidas, mesmo assumindo que isso nos entristece muito. Suas lágrimas escorriam e, olhando aquele rostinho enevoado pela tristeza, pensei em como temos que reaprender a conviver com a morte. Falei para ele, com os ouvidos voltados para dentro de mim, que diante da morte, o único alento é a vida que partilhamos com quem se vai. Meu pequeno, que me ouviu com os olhos ainda embargados, me perguntou em que dia ela morreria. "Não sei, filho, mas não vai demorar", disse, francamente. Naquela mesma noite, ela nos deixou e à vida. Ela se foi, como o esperado, sem grandes sofrimentos. Fiquei triste de ela não estar conosco e, ao mesmo tempo, aliviada por ter sido atendida nessa hora derradeira. Mas, novamente, me perguntei porque nós perdemos a capacidade de aceitar a morte. Havia pedido à veterinária que a atendeu, na emergência, que não fizesse nenhum procedimento para tentar salvá-la. Eu sabia que estava morrendo e queria apenas que não sofresse. A notícia da morte me chegou junto com o prontuário da internação. A veterinária, formada, assim como os médicos, para combater a morte, me explicou que ela morrera após uma tentativa de normalizar sua frequência respiratória, com uma pulsão de líquido que estava em seu pulmão. Não deu certo. Logo após, ela se foi. Saber do procedimento me entristeceu menos por ter ele ter contrariado meu pedido e mais por eu não ver vantagem nele. Para que realizá-lo? Para mantê-la viva aos trancos e barrancos por mais algumas horas ou dias? Não teria sido melhor dar um analgésico forte para ela não sentir dor e deixá-la partir em paz? Afinal, a gata tinha quase 21 anos e, me colocando nesse lugar, me veio a certeza de que se chegar aos 100, não quero médicos fazendo procedimentos de reanimação quando minha morte chegar. Temos que reaprender a morrer. Não há morte mais digna do que a trazida pela velhice. Uma morte do fim do caminho, que não nos rouba nada e, apenas, abre caminho para outros. Sei que os médicos e os veterinários hoje são formados para lutar contra a morte, mas, em algumas situações, como a da Isolda, acho que fazer um pacto com ela seria mais generoso. Ela teria morrido do mesmo jeito, mas sem a angústia de ter que lutar pela vida aos quase 21 anos. Não foi assim. Eu, que a vi nascer na casa da minha mãe e me despedi dela aos poucos, me agarrei à certeza de que minha gata teve uma vida feliz ao nosso lado e fiquei aliviado por ter podido conversar com meus filhos sobre a morte. Falar sobre a morte é uma maneira de digeri-la e, assim, aceitá-la. O silêncio acerca dela, ao contrário do que nossa sociedade nos faz crer, não a afasta de nós, apenas dá a ela o poder de nos assombrar. E, nós aqui nesse silêncio pós-morte, nos apegamos à certeza de que a Isolda foi e nos fez feliz. 

PS: Essa foto não faz jus à beleza da Isolda. Mas foi a que achei agora, na pressa. Depois, coloco outra mais bacana.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Querido diário

O Antônio deu para ler sozinho, sem a minha presença ou ajuda. Entre os livros que escolheu para essa aventura está O diário de um banana, de Jeff Kinney, que o atrai por ser coisa de menino, ao mesmo tempo que o desagrada por Greg, o protagonista, estar sempre sendo sacaneado pelo irmão mais velho, Rodrick. Apesar de ele e o Pedro se darem muito melhor do que os irmãos do livro, muitas vezes se parecem com eles, como dá para ver no causo que conto a seguir.

Antônio me pediu um diário. Com cadeado e tudo para guardar a sete chaves seus melhores e maiores segredos.
Fomos à papelaria, fuçamos as estantes e só encontramos diários para meninas. Cor-de-rosa, poderoso com caixinhas de música, decorado com corações, bonequinhas de luxo ou princesas, enfim, nada que lembrasse o universo de um menino apaixonado por futebol e louco para treinar sua letra cursiva e, assim, chegar abafando no terceiro ano.
- Ah, mãe, então não quero – falou, desanimado.
- Filho, a gente pode comprar um caderno maneiro e ele ser o seu diário.
- Mas, assim, todo mundo vai poder ler meu diário - replicou. 
- Não. A gente compra o caderno e um envelope com fecho eclair para você guarda-lo. 
- Então, tá – assentiu, feliz.
Catamos na papelaria um caderno – o escolhido foi um do UFC, mais menino impossível -, um lápis do Brasil, um apontador e o envelope preto com fecho, que escondia tudo em seu interior. Ele saiu felizão da papelaria, com o diário debaixo do braço, ansioso pelo momento que poderia ficar sozinho com seus segredos.
Chegamos em casa e ele pôs-se a escrever. Escreveu, escreveu, escreveu. Apagou, apagou, apagou. Escreveu mais e mais e escolheu o Xico, seu comparsa de quase todas as horas, para compartilhar seus segredos e depois, com toda a pompa que o momento merecia, guardou o diário. Não a sete chaves, mas escondidinho, num canto do armário.
Os dias se passaram, o diário foi sendo deixado de lado, até que neste carnaval, voltou à ativa. Renato, o primo adulto e desavisado do caráter confidencial do caderno, o abriu e se surpreendeu com o conteúdo. Lista dos amigos, lista negra, lista da família, etc. Mas o melhor viria na lista dos melhores amigos, em que só três sujeitos figuravam: “meu irmão, meu primo e meu cocô.” 
Isso mesmo, “meu cocô.”
- Mãe, olha o que o Antônio escreveu no diário dele – Pedro veio correndo delatar – Ele disse que o cocô dele é um de seus melhores amigos – contou, rindo, com cara de irmão mais velho, diante das maluquices do mais novo. 
E não é que o cocô do menino estava mesmo lá, entre seus melhores amigos. Todos se puseram a indagar a razão de escolha tão esdrúxula. 
- Será que o Antônio se sente aliviado quando se livra do cocô e por isso ele é um de seus melhores amigos, ou se ele gosta tanto dele que o guarda para quando o carnaval chegar – perguntava, rindo, o irmão. 
 
Eu fiquei de fato intrigada com o que poderia ter feito meu menino eleger o cocô, tão desprezado pela humanidade, como um de seus amigões e cheguei a pensar que essa resposta fazia parte dos mistérios da vida. Mas não. Era apenas mais uma daquelas maldades perpetradas pelo irmão mais velho, contra o mais novo.
Então aos fatos. O Pedro e o Renato resolveram tirar uma onda com a cara do Antônio e o fizeram incluir, em seu próprio diário, o cocô na lista de seus melhores amigos. Cocô inscrito, vieram a mim, mãe crédula e ansiosa por novidades, mostrar a lista dos amigões do pequeno. Minha surpresa não foi surpresa para os dois grandões, que se divertiram a valer com a bem-sucedida maldade contra o menor. Tudo bem, não fosse a mãe ter contado para todo mundo sobre as estranhas amizades do filho caçula.
- Mãe, eles me obrigaram a escrever o cocô na lista dos meus melhores amigos – contou-me o Antônio, com os olhos úmidos e um tom entre o humilhado e o revoltado, ao saber que eu divertia meus amigos com a história do cocô amigão.
A confissão que deixou a história a nu, me fez pensar em como nós, adultos, não entendemos nada de cocô, de crianças e de melhores amigos, além de me fazer lembrar da dor e da delícia de se ter um irmão mais velho. 

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O resultado de um olhar atento para os próprios pés

O oculto

Tão rasteiro, sempre perto do chão.
Formato estranho, pranchado,
sem protagonismo, comandado,
perdido, sem direção.

Uma borda cortada em cinco,
com as pontas duras, e a outra firme: raiz
fincada em um círculo que nunca se fecha. 

Sustenta tudo sem reconhecimento,
aguenta todo o peso quieto, despercebido,
desapercebido de adornamento.

Nem quente, nem frio, sempre morno.
Nem belo, nem feio, sempre torto.

É aquele que ninguém revela, que se esconde
em sapatos comprometidos com a graça,
para evitar a desgraça do sol e da chuva. Oculta-se.

Nada mais estranho do que uma mão ao rés do chão.
No masculino é áspero, quebradiço.
No feminino, unhas vermelhas
a bulir com a fuligem das ruas...

Assim, são os pés, que nos sustentam e nos guiam.
Mal-acabados, malditos, malvistos, fedidos, invertidos. 

Esse poeminha-descrição foi o resultado da provocação feita pela Cláudia Chigres, uma das professoras da pós de Literatura, Artes e Pensamento Contemporâneo, da PUC-Rio, para que descrevêssemos uma coisa, qualquer que fosse. O pé foi o escolhido, por estar ali, sobre a cadeira da frente, bem em frente a meu nariz. Sempre ali, despudorado em uma sandália aberta, pedindo atenção. Um exercício que me fez olhar as coisas com outros olhos. 
Experimenta você também. 

Em tempo: essa foto dos meus próprios pés, relaxando em um rio de águas 
límpidas e geladas, fui eu mesma que tirei. Uma delícia. 

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Sobre habitar o tempo, o nosso e de nosso tempo

Tebas, segundo meus filhos, é um lugar que não existe. Mas Tebas existe, sim. Lá escondidinha em um canto de Minas Gerais e, mais ainda, vivíssima, em minha memória. É um lugarejo tradicional, com a praça marcando seu centro, poucas centenas de casas, muitas vendas, uma padaria, uma igreja no alto do morro, com o cemitério se escondendo ao fundo, um campo de futebol, uma escola, uma biblioteca, um precário posto de saúde e uma cadeia pública. Assim é a Tebas que não vejo há quase 20 anos. O lugar onde aprendi a entender o tempo. Um tempo lento, modorrento, prenhe de nada. Por lá, não há pressa, não há surpresas a serem perseguidas e, tampouco, grandes emoções a serem vividas. O tempo na roça é manso, não nos convida para a luta, não quer nos vencer ou ser vencido. Ele corre. Apenas corre junto com os ventos, as águas, os bichos, os moleques atrás dos outros. O tempo na roça é uma experiência, como é o bater de nosso coração, a chuva que se aproxima, as vozes que rompem o silêncio, o crepitar da lenha no fogão. A noite não engole o tempo e tampouco o dia o pare. Ele escorre do claro para o escuro, do escuro para o claro, nos impedindo de fazer contas e de fracionar o dia. Ele passa lento, junto ao suor dos homens que tratam a terra, às conversas de mulheres em roda que amarram o fumo ou ardem ao lado de tachos de doce, ao embalo dos velhos em cadeiras de balanço, a crianças que correm pelos campos, catando matinhos, pedras e tocos. O tempo na roça é assim, quando a gente para, ele para junto para nos permitir descalçar os pés, uni-los ao chão, deixá-los sentir o frio da pedra, a umidade do orvalho, o calor do sol. Somente nossos pés podem fazer o tempo voltar a andar. Em tudo este tempo é diferente do que vivemos na cidade. O nosso tempo - ou será de outro, apenas emprestado a nós - é, assim, apressado, nervoso, cheio de vazio. Um vazio que, ao contrário do nada lá da roça, que se deixa ocupar pelo ar, nos angustia e pede preenchimento. E é na pressa de preenchê-lo que vamos perdendo a intimidade com o tempo. Aqui, em casa, os meninos, em sua correria para saciá-lo, vão a cada dia que passa tendo mais dificuldade em acreditar que Tebas possa de fato existir. De cá, me espanto em vê-los passar suas horas vagas operando dispositivos eletrônicos para matar o tempo com joguinhos e viagens virtuais. Me culpo por não poder oferecer a eles uma realidade que os faça experimentar o tempo, sem a pretensão de vencê-lo, assim de mansinho, como fazem Lia e Nico, personagens de Lúcia Hiratsuka. Eles vivem no campo e brincam como as crianças de lá, com a terra, plantas e bichos. A natureza preenche o universo dos dois irmãos e animam suas aventuras, que, se julgadas pelo padrão do audiovisual contemporâneo, são bastante prosaicas. Mas é justo a simplicidade e a capacidade de cada um em ver sentido em sua própria existência que fazem de Antes da chuva, Corrida dos caracóis A venda, todos editados pela Global, livros preciosos, que podem nos ajudar a mostrar para as crianças pequenas a riqueza de viver a experiência do tempo, sem pressa, sem expectativas, de boa com a própria vida. Lúcia, assim como João Cabral de Melo Neto, no poema Habitar o tempo (que reproduzo abaixo), nos fala do desafio de nos apaziguarmos com o tempo. Ela com a delicadeza de suas aquarelas o frescor da infância, e ele com a força de seus versos ásperos, difíceis, que nos convidam a decifrar os mistérios do tempo, como se estivéssemos diante de uma esfinge. Habitar seu próprio tempo, sem se afastar do tempo alheio é o desafio maior que vivo na maternidade. Deixar meus filhos serem contemporâneos de si mesmos, sem que, para isso, sejam tragados por um tempo hostil, que os alienará de sua própria existência. Um desafio tão enorme, que só me resta pedir a Cronos que tenha piedade de nós.

Habitar o tempo
Para não matar seu tempo, imaginou:
vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;
no instante finíssimo em que ocorre,
em ponta de agulha e porém acessível;
viver seu tempo: para o que ir viver
num deserto literal ou de alpendres;
em ermos, que não distraiam de viver
a agulha de um só instante, plenamente.
Plenamente: vivendo-o de dentro dele;
habitá-lo, na agulha de cada instante,
em cada agulha instante: e habitar nele
tudo o que habitar cede ao habitante.

E de volta de ir habitar seu tempo:
ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;
e como além de vazio, transparente,
o instante a habitar passa invisível.

Portanto: para não matá-lo, matá-lo;
matar o tempo, enchendo-o de coisas;
em vez do deserto, ir viver nas ruas
onde o enchem e o matam as pessoas;
pois como o tempo ocorre transparente
e só ganha corpo e cor com seu miolo
(o que não passou do que lhe passou),
para habitá-lo: só no passado, morto.

João Cabral de Melo Neto

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Não posso deixar de falar de Clarice

Há três dias tenho acompanhado pela web a polêmica em torno do artigo do Gregório Duvivier, publicado pela Folha, em que ele fala de seu amor por Clarice Falcão. Vi gente apaixonada pela declaração de amor póstuma de Gregório, gente colocando em dúvida sua sinceridade e homens se perguntando a razão do sucesso do texto. Uma perplexidade que, pelo que entendi, motivou o humorista Rafinha Bastos a fazer um registro sobre seu próprio casamento. Desta vez, só vi gente baixando o porrete em sua vulgaridade. Li os dois textos e vi verdade em ambos. Os casamentos são assim mesmo, ambíguos. Mas isso pouco me importa, afinal, casamento é igual à opinião: cada um tem o seu. O que me importa, aqui, não é falar sobre a natureza de cada opinião, mas, sim, do excesso delas. Mais ainda. Do excesso de exposição de nossa vida privada que praticamos hoje. O amor de Gregório e Clarice, que já morreu, não precisava ter vindo à público, profanado em uma página de jornal, assim como a intimidade de Rafinha e Junia também não. Em busca de likes, audiência, um lugar ao sol, estamos transformando nossa vida em mercadoria, nossos sentimentos em enredo de novela, nossa experiência em banalidade. Não falo de memórias, reflexões, análises apoiadas em nossa própria experiência - afinal, pensamos à partir dela - que já deram bons e belos textos para a humanidade. Mas será que é preciso expormos tudo o que vivemos? Da nossa ida ao banheiro de porta aberta ao nosso choro de separação? Com que cara entrar no elevador e cumprimentar o vizinho - aquele de quem não gostamos -, se ele está com o jornal com nossas confissões mais íntimas debaixo do braço? Como encarar o chefe, de quem escondemos as verdadeiras razões de nosso atraso, depois de ele ter lido que passamos a noite em uma balada, bebendo sei lá o quê? Talvez torcendo para que não seja preciso encontrar essa gente cara a cara, nos mantemos refugiados no Facebook ou então ouvindo a voz fraca de nossas avôs, donas de um saber ancestral, nos dando aquele velho conselho, de que é preciso pudor na vida. Sei que lutamos muito para derrubar essa moral pudica, mas me permito meter a mão neste saber e, com um toque de modernidade, reduzir esta receita a apenas um pouco de pudor. Só um pouco. O suficiente para proteger nosso ego das críticas despudoradas de que são vítimas aqueles que muito se expõem na rede. Digo isso, aqui neste blog, onde registro as impressões de leitura com meus filhos, por ter tido em todos esses anos a preocupação de falar de nós, sem nos desvelar por inteiro. Um pouco apenas, como nosso tempo nos exige ou permite, mas não de corpo inteiro a ponto de me sentir nua diante daquele amigo não tão íntimo. Um exercício sem fim, que me faz, ao mesmo tempo, ser acanhada e ousada para tentar acertar. Espero que tenha conseguido, para evitar que meus filhos, um dia ao se debruçarem sobre esses textos, se sintam traídos e percebam que, neste tempo todo, eu não estava falando deles, mas apenas do amor que sinto por eles. Assim faço, neste modesto blog, como já o fizeram muitas mães, que falaram de seu amor por seus filhos por meio de livros. Obras que graças ao talento dessas mães - grupo do qual, sem nenhuma falsa modéstia, estou excluída - transformaram-se em obras fundamentais para a nossa literatura para crianças. O que me faz lembrar - me desculpa o oportunismo - de Clarice. A minha Clarice não é a de Gregório, é a Lispector. Nunca a conheci, mas a amo de longe, mesmo envolta em mistérios, que ainda não desvendei por falta de tempo de terminar sua biografia. A minha Clarice registrou em literatura um "pedido-ordem" de seu filho Paulo para que escrevesse uma história só para ele. O mistério do coelho pensante é essa história, só para o Paulo, que revelada da intimidade da família, sem desvelar todos os seus mistérios, faz a alegria de muitas crianças que nem desconfiam quem seja Clarice ou Paulo e Pedro, seus filhos. Não há dúvidas de que Clarice, com sua escrita que faz o leitor se perguntar se ela fala de si ou de um outro inventado, nos provoca a pensar sobre um tempo que, ao que parece, nos convida a perder de vez o pudor.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Nosso coração faz tum-tum por vocês

O Antônio e o Xico são mais que amigos. Como diz a Juliana, são parças. Daqueles parças que entendem o outro só com um olhar, um sorriso ou mesmo com os muitos e muitas vezes pensamentos, digamos, nem tão bons, assim.
Mas erra quem pensa que eles são muito parecidos. Qual nada? O André os descreve como o tempo e o vento. Meu Antônio, que ignora a existência do tempo, é o próprio. Já o Xico, assim como o vento, passa voando ao nosso lado. O resultado do encontro do tempo com o vento é sempre um tufão de boas lufadas, em que a gente nunca sabe, como bem observa o Cadoca, quem é o culpado.
O maior amigo deles é, sem dúvida, o chão. Chão para correr, rolar a mais que amada bola, escorregar, sentar e, se nada mais houver para fazer, deitar. Uma proximidade que faz com que eles tenham, muitas vezes, a cara, o cheiro e a cor do chão. Este mimetismo faz deles largos como o chão.
No chão da cidade, se viram como podem. No clube, no parque, em casa, no play, na escola, onde e como der. No chão da Kihu, descobrem um novo universo em cada tufo de grama, em cada buraco na terra, em cada pedra perdida no terreno. Ali são mais que o Tempo e o Vento. São os amigos inseparáveis. Uma amizade inspiradora, que fez com que o Vento, improvisasse:
- Tom-tom, meu coração faz tum-tum por você – disse, sorridente, para ocupar o tempo, nessa manhã modorrenta, aqui em casa.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Entre mim e o outro há mais do que um bife e uma pipoca

Tenho dois filhos, como os seguidores desse blog sabem. Dois meninos, um de 14 e outro de 9 anos, que têm toda a vida pela frente. Sonhei para eles com um Brasil mais justo, que fosse dando passos largos para se afastar do país em que vivi grande parte da minha vida. Um Brasil em que mulheres pobres entravam todos os dias na minha casa - seja minha ou a da minha mãe - para lavar pratos, latrinas e roupas e cozinhar a comida nossa de cada dia. Não raro, estas mesmas mulheres saíam da minha casa, com a certeza de que, na delas, estariam sujos os poucos pratos que tinham, também suja a única e velha latrina e quase vazias as panelas gastas. Ainda pior. Seus filhos, aqueles mesmos meninos pobres temidos pela família das patroas, estariam entregues à própria sorte, soltos na rua, driblando o azar, ou trancados em casa para se proteger da violência de um mundo em que não havia lugar para eles. Um Brasil onde nós, filhos da elite e da classe média, dividíamos nossa infância com crianças pobres, que estariam presas para sempre à pobreza e a uma espécie de minoridade cidadã. A nós era dada a promessa de crescer e ganhar o mundo. Adultos, assumíamos o lugar de nossos pais, enquanto os meninos pobres buscavam seu lugar na área de serviço. Uma realidade que era naturalizada pelo discurso do mérito ou da falta dele, que escondia a verdadeira origem do problema. Um discurso que perdoava a todos nós por seguir a vida, sem nos revoltarmos ou solidarizarmos com aqueles que, um dia, foram nossos amigos de infância. Eu vivi isso e não vivi só. Cresci, fui para a faculdade; errei, tive outra chance; me empreguei, construí uma carreira; me descolei da minha infância, onde, tenho certeza, absoluta certeza, muitos de meus amigos continuam. Waldemar é deles o que mais me marcou. Filho de uma família de lavradores pobres do interior de Minas, que expropriados da terra foram parar na cidade, onde viviam sem muita função, esquecidos pelos bem-nascidos, Waldemar era semi-analfabeto e, por isso, sofria, coitado, com nossas risadas diante de sua ignorância. Um dia, sem mais, Waldemar parou de brincar comigo e meus irmãos para trabalhar como jardineiro na fazenda de minha família. Nós, então, adolescentes o esquecemos e começamos a planejar uma vida bem longe dali. Ele, no entanto, foi ficando por lá e tenho certeza, ainda hoje, está está no lugar que foi de seu pai, junto com outros milhões de brasileiros que ficaram para trás no processo de modernização conservadora pela qual o Brasil passou nos últimos 50 anos. Entre nós ficou mais do uma enxada a separar nossos mundos. Fechou-se uma porta, a mesma que se abria para ele, na minha infância. Por ela, não havia como alguém, como Waldemar, passar, e nós, naqueles dias, não estranhávamos esse sinal fechado. A minha sorte foi ter tido, do lado de cá da porta, uma família que, apesar de todos os seus vícios de classe, sonhava com um mundo sem portas fechadas, mesmo que ele nos parecesse distante. Eu cresci, atravessei muitas portas e deixei Waldemar para trás, mantendo-o prisioneiro em minha memória. Waldemar me serviu mais como uma bússola do que como uma lembrança. É em sua figura de menino de coração bom e ingênuo que me fixo todas as vezes que preciso escolher um lado na vida. É do lado dele que me coloco todas as vezes que a vida me pergunta com quem quero me irmanar. É nesse sentimento, que sei não ter mais nada de amor ou amizade, que reafirmo meu compromisso ético com um mundo menos desigual e mais justo. É este mundo que quero legar a meus filhos, para permitir que, estejam onde estiverem na vida, possam se emocionar com o que é humano, mesmo que essa humanidade, como nos ensinou João Cabral de Melo Neto, seja uma vida severina. E é por isso que, aqui em casa, as mazelas humanas estão sempre em pauta. Não vou, é claro, impor aos meus filhos doses diárias de sofrimento alheio, mas, também, não vou educá-los como se eles não tivessem nada com isso. A melhor maneira que encontrei de colocá-los diante da dor alheia, em um mundo com tantas portas fechadas a nos separar dos outros, é a experiência que a literatura nos proporciona. Ler é sempre um bom exercício de empatia e alteridade e, por isso, não devemos ter medo quando nossos filhos se emocionam com os livros. Ver os olhinhos deles marejados nos aperta o coração, sei disso, mas também nos dá esperança de que sejam pessoas capazes de experimentar-se na experiência do outro, o que é, nesses dias de individualismo exacerbado, um alento e uma esperança. Esse exercício de alteridade é desconfortável, mas acima de tudo é necessário e a literatura é uma boa maneira de vivê-lo. Nem sempre ela nos faz rir ou sonhar, como muita gente acredita que seja seu papel. Muitas vezes nos faz sofrer, um sofrimento que nos permite adiante um sorriso e um sonho ainda melhores. Esse caminho nos é oferecido por muitos livros para crianças, mas destaco aqui o conto O bife e a pipoca, de Lygia Bojunga, editado em Tchau, pela Casa de Lygia Bojunga, pela coragem de sua narrativa. A autora narra, sem constrangimentos, o encontro de Rodrigo, filho da classe média, com Tuca, menino de favela que estuda, graças a uma bolsa, em uma escola de bacanas. O conto é preciso no espanto que os dois experimentam ao se aproximarem. Um encontro que revela as diferenças entre seus dois mundos. Na casa de classe média, não é preciso razão para se comer um bom e suculento bife, já, na casa do pobre, a pipoca é servida como iguaria fina. Um contraste que dói no estômago do leitor e faz a leitura do conto se constituir em uma experiência sofrida, mas necessária por fazer nossos meninos pensarem no desconforto do outro e no quanto, esse sentimento, nos afeta, O Pedro, meu filho, leu o conto na escola, aos 10 anos, e foi convidado pela professora a escrever uma carta, aos moldes do que Rodrigo escrevia para seu melhor amigo, contando sobre sua relação com Tuca. A carta do meu menino deu conta do seu espanto com a história de Tuca e Rodrigo e apontou para o entendimento de de era possível conviver e aprender com alguém tão diferente dele. Uma carta de um menino chocado com uma dor que não imaginava existir e que lhe foi apresentada pela narrativa de Lygia, sempre corajosa ao colocar o dedo na ferida. A literatura é assim, como minhas memórias de infância, em que tantos ficaram para trás, um pouco de dor e de delícia. Ao lidar corajosamente com essa dualidade de sentimentos, ganhamos a possibilidade de andarmos para frente. Assim na literatura, como na vida, não podemos nos livrar dessa dualidade. Quem tenta passar ao largo desse desconforto, acaba se livrando da empatia, aquele sentimento que nos torna humanos e nos liga aos outros. Por isso, eu luto. Para, como disse Vinícius de Moraes, "ninguém tivesse mais que lutar".

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Uma longa viagem de descoberta

Os meninos estão crescendo, ganhando autonomia e tem sido cada vez mais comum eu ir dormir sem dividir leituras com eles. O Pedro, já um adolescente, quase nunca me quer a contar histórias e tão pouco lê sozinho, mas não raro tira uma casquinha de minhas leituras com o menor. Antônio, o menor, resolveu, de uns tempos para cá, fazer ele mesmo suas leituras. Liberada, sempre arrumo o que fazer, nem que seja observá-los de longe, imaginando que daqui a pouco nem mesmo em casa estarão. Numa destas espiadelas, flagrei os dois, cada qual em sua cama, lendo seus livros. O do Pedro - Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva, recomendado pela escola - me fez lembrar da minha juventude, quando o livro foi lançado e fez grande sucesso. O li com o mesmo nó na garganta que percebi no Pedro. Como um cara tão jovem pôde pular em uma cachoeira e sair dali paraplégico? O Pedro veio a mim com esta pergunta, sentindo o mesmo frio na espinha que percorreu cada um dos leitores do livro - uma espécie de rito de passagem para um tempo em que nem tudo dá certo. Ali pertinho, ainda alheio a todas as dores do mundo, estava o Antônio se divertindo com O Diário de um Banana, de Jeff Kinney, que, por sua vez, deixou claro as diferenças entre os dois irmãos, que, neste momento em que um deixa a infância para trás, estão unidos apenas pelo amor e, quase, mais nada. É a aposta neste amor que nos une me faz pensar sem angústia no dia em que eles irão embora e que a casa voltará a ficar vazia. Uma nova vida para a qual estou me preparando desde já. Quero tê-los ao meu lado como adultos que vão e voltam e não como adolescentes, que nunca desgarram. Que eles possam fazer a viagem em busca do que realmente querem ser e são e, assim, consigam se desligar do que nós, pais, esperamos deles. Uma viagem de descobrimento, assim como a de Griso, o único, de Roger Mello, que apesar de ser um livro para crianças foi minha leitura solitária. O Antônio não o quis, para o Pedro nem ofereci e, por isso, fiquei eu só a me encantar com o unicórnio em busca de sua individualidade, marcada pela descoberta das diferenças. Griso é o último unicórnio sobre a terra que, na esperança de encontrar um semelhante, parte para uma longa viagem até os confins do mundo. No caminho encontra vários outros seres, mas nenhum de sua espécie, até que se depara com um cavalo alado, ele também o único sobre a terra. Um encontro que pode ser lido como o momento em que percebemos que nos constituímos como únicos, como indivíduos, mirando as diferenças. O caminho do personagem de Roger, doído, como será o nosso, é narrado não apenas com palavras, mas principalmente com imagens do próprio autor, que, em 2014, conquistou o prêmio Hans Christian Andersen de ilustração, o primeiro dado a latino-americano. Griso toma várias e belas formas, inspiradas em vasos gregos, em murais chineses, na arte rupestre, em ilustrações da idade média e por aí vai. A experimentação de Roger é um presente para o leitor, que tem no livro, editado pela Global, um pequeno painel da arte universal atravessando os séculos e as culturas. Um painel que nos encanta o olhar e, acima de tudo, não nos deixa esquecer que a humanidade não é apenas uma, é múltipla e que, nestes milhares de anos de existência, assumiu formas diversas para dar significado a sua história. É essa liberdade que espero para meus meninos. Que eles possam descobrir, na sua longa viagem até os confins da vida, o que eles realmente são e querem ser.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

As narrativas e a tecitura do manto do acolhimento

Nos últimos tempos, aqui em casa, só lemos mitologia. O Antônio é um apaixonado por histórias e seres fantásticos e só quer ouvir narrativas que se fundem no lado de lá da razão e possam lhe oferecer novas possibilidades de entender o mundo que o cerca. Assim, voando sobre oceanos em asas feitas de penas e cera, puxando espadas mágicas encravadas em pedras, enfrentando monstros terríveis e ouvindo no som dos pássaros os mistérios da criação vamos tecendo uma grande rede de narrativas, que, noite após noite, nos mantém ligados, até o dia em que ele descobrirá outros caminhos para além dos livros que lemos juntos. Caminhos que o Pedro, com 14 anos, já começa a vislumbrar e me fazer antever, pela primeira vez, nestes anos de maternidade, o momento da separação. Nunca pensei que diria isso, certa de que estava preparada para o futuro dos meus filhos, mas percebo agora que a adolescência não é um tempo de incertezas apenas para quem o vive, é também para quem o acompanha, como as mães e os pais. O Pedro já está comprido o suficiente para pegar sem a minha ajuda seus sapatos na prateleira mais alta do armário e começa a escrever as primeiras linhas de sua narrativa, onde eu e seu pai não seremos mais protagonistas, mas tenho, mais que certeza, esperança de que estaremos sempre nesta história. Por enquanto, vivemos naquela gangorra que nos coloca ora diante de um jovem e ora frente a uma criança. No meio do caminho está a vontade de ficar mais um pouquinho no ninho, de ser servido como menino, de brincar com o irmão e de ouvir mais uma história, mesmo que finja não estar interessado, com aquele olhar enviesado com que tem mirado O Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, de Rosalind Kervin, trazido pelo Antônio da escola. O livro faz parte da coleção Clássicos Infantis, que se destaca no mercado de adaptações pela qualidade do texto e o capricho das edições ilustradas, com quadros explicativos sobre o contexto histórico das narrativas e suas influências no imaginário ocidental. Vale dizer que o interesse do Pedro é justificado. A história, nascida na mitologia do povo Celta, que dominou a Grã-Bretanha até a hegemonia do cristianismo na Europa, é mesmo fascinante e até hoje desafia historiadores e arqueólogos a provar sua existência. Ao que tido indica Artur e sua corte são apenas mitologia que buscava explicar a vida em um mundo encantado, onde a vida real se realizava em um universo dominado por magos e feiticeiras. É o poder da magia de Merlin e de Morgana que agita a história de Artur, da rainha Guinevere e de seus cavaleiros, que distribuídos, em posição de igualdade na Távola Redonda, defendem o reino de Camelot. Ao longo dos séculos a história foi se misturando ao imaginário cristão e Artur e seus súditos passaram, assim, nas versões da Idade Média, a defender símbolos da Igreja Católica Romana, como a cruz, e a ceder os seus, como santo graal, ao cristianismo. Este sincretismo de culturas tão diferentes produziu, com certeza, uma das mais fascinantes histórias de todos os tempos. No reino de Camelot não falta nada. Tem poder, ambição, amor e traição e, acima de tudo, magia. Com tantos atrativos O Rei Artur tem sido um sucesso entre os meninos e me feito aprender muito deste mito, que, com certeza, é um dos mais belos romances de capa e espada que já existiu. A magia de Merlin e Morgana, para o bem ou para o mal, tem me ajudado muito a tecer o manto com que acolho meus filhos todas as noites. Que assim seja até o dia que eles quiserem.  

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Mulheres e homens escrevendo uma nova história

O relançamento recente do livro As mulheres e os homens, da Equipo Plantel, pela editora catalã Media Vaca e por aqui pela Boitatá, o selo infantil e juvenil da Boitempo, me fez pensar em como, mais do que nunca, é preciso conversar com as crianças, sejam elas meninas ou meninos, sobre as questões de gênero e a luta das mulheres por direitos. O feminismo está de novo em pauta na sociedade, com seu debate reanimado pelas jovens e adolescentes em busca de direitos e na luta contra as abomináveis violações do corpo da mulher, seja pelo abuso sexual ou pela violência física. Mas ele não mexe apenas com a cabeça de meninas e mulheres. Ele balança também meninos e homens, que precisam se adaptar a novos tempos, em que são cobrados a ter uma postura menos machista. Muita coisa boa tem vindo com este renovado debate, mas há também os excessos. Excessos que, sei, são normais no calor da luta, mas que têm feito muitos adolescentes se espantarem com a hostilidade reservada a eles, pelo simples fato de serem meninos. Não há dúvidas de que sua condição de gênero lhes garante um lugar privilegiado nas relações sociais, lugar de quem não precisa avançar sobre os outros para garantir direitos, mas que, agora, está vendo ser necessário recuar para preservar a relação com o sexo oposto. Até aí, tudo bem. O que esses meninos e meninas ainda não conseguem compreender é que a luta das mulheres por direitos tem muitos matizes, a maioria deles, determinados por questões de classe ou culturais. É certo que mulheres pobres e negras, em nossa sociedade herdeira do escravismo, sofrem muito mais com o machismo do que as mulheres brancas das classes médias urbanas. Assim, como é certo também que homens pobres, em sua  maioria, são mais machistas do que seus pares destas mesmas classes médias urbanas. Nestas camadas, o discurso feminista se fez ouvir muito mais cedo, criando gerações que há mais de um século discutem o lugar das mulheres em nossa sociedade. Não que este lugar já esteja definido e garantido. Não. Longe disso. Mas o primeiro passo, que é alertar para o problema, já foi dado. E meninos, como o Pedro, meu filho, já estão sendo criados neste novo contexto. Isso também não quer dizer que eles já tenham vencido todos os vícios de homens criados em uma sociedade machista. Não. Também longe disso. Mas é certo que é injusto tratá-los como inimigos, adversários insensíveis de meninas que bravamente lutam por seus direitos. É preciso antes de tudo trazê-los para este debate, já que as relações sociais se fazem por homens e mulheres, categorias que há muito deixaram de ser homogêneas e estão marcadas por uma multiplicidade dada por opções sexuais, situação de classe, raça, idade e várias outras variáveis. É nesta relação entre homens e mulheres que se dá a luta feminista. É em diálogo com os homens que vamos redefinir nossos papéis e, desta conversa, não há dúvidas, vem emergindo há tempos novas questões para o masculino. Questões que, em nossa sociedade patriarcal, ainda não foram capazes de mudar a postura dos homens no interior das famílias, fazendo-os assumir responsabilidades com os filhos e a casa que antes eram vistas como atribuição das mulheres. Mas para isso é preciso também que a sociedade se prepare para os homens alargarem suas responsabilidades domésticas, concedendo a eles uma licença paternidade decente, aceitando uma eventual falta ao escritório para cuidar de um filho doente, permitindo que percam algumas horas de trabalho para comparecer à reunião de pais na escola, só para falar de algumas responsabilidades assumidas, hoje, quase que integralmente pelas mulheres. Sei que já houve muitos avanços, mas eles ainda estão no âmbito do indivíduo. O que queremos é fazer com que estas mudanças se façam sentir na cultura brasileira, em todos os lares. Sinto em meu filho mais velho uma certa perplexidade com a maneira que é olhado pelas colegas. Com justiça, diz que vive em uma sociedade machista, mas que nem todos os homens são machistas. É verdade, mas é verdade também que quase impossível para nós brasileiros, tanto homens, quanto mulheres, não escorregarmos em nenhum momento e nos flagrarmos tendo uma atitude machista. Por isso, há ainda muito a conversar com meninas e meninos e o livro “As mulheres e os homens” nos dá uma mãozinha para travarmos este diálogo sobre a luta das mulheres por direitos. O título faz parte da coleção “Livros para o amanhã”, que traz temas da cidadania e da política em linguagem acessível para crianças, com ilustrações de Lucí Gutiérrez. Em As mulheres e os homens o feminismo é abordado de forma natural, mostrando para as crianças que as diferenças irreconciliáveis entre o masculino e o feminino são resultado de uma educação sexista, em que meninos são criados, em um amplo universo azul, para mandar e meninas, em um mundinho cor-de-rosa, para obedecer. Romper com essas desigualdades e permitir que mulheres e homens escolham seus caminhos, em uma criação sem preconceitos - como meninas não gostam de matemática e meninos não choram - é a mensagem do livro, que termina afirmando que eles são mesmo diferentes, afinal não são do mesmo sexo, mas desiguais, nunca. A maior qualidade de As mulheres e os homens é apresentar o feminismo sem dogmatismos e de forma lúdica, como deve ser uma narrativa destinada a crianças. Uma ótima leitura para se fazer hoje com meninas e meninos. No mais é se preparar para responder a muitas perguntas. Muitas delas que, tenho certeza, ainda não estamos prontos para responder. Mas é essa a magia da história, com agá maiúsculo: escrevê-la e vivê-la ao mesmo tempo. 

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Uma emocionante viagem até o outro

Ter irmão nem sempre é fácil. É preciso antes de tudo muita paciência e amor para enfrentar as zoações e as pequenas maldades cometidas em nome do ciúme e da disputa por espaço. Aqui em casa, os meninos estão crescendo e junto com eles a distância entre os mundos em que vivem. O Pedro, com 14 anos, já é um adolescente e o Antônio, com quase 9, está ficando para trás junto com sua infância. O amor, apesar disto, continua ali, só que agora obscurecido pelas diferenças que começam a surgir entre os dois. A distância, na verdade, neste momento, ainda não é substancial, serve mais para proteger o mais velho dos sentimentos de criança do mais novo, que tanto o fazem lembrar de si próprio. Esse desconforto do Pedro ficou claro outro dia, em que li para o Antônio O louco do meu bairro, da escritora paulista Anna Flora, editado pela Ática. Para falar de amizade e rejeição, a autora nos leva para um tempo em que crianças de uma cidade grande ainda formavam turmas de rua e brincavam com carrinhos de rolimã e estilingues. A história nos é contada por uma menina, que vê suas duas amigas deixarem a cidade e, sozinha, entre os garotos, ser excluída da turma. Ela acaba fazendo amizade com Pedro, um menino esquisito, conhecido como o Guardinha Louco, que a ajuda a enfrentar a rejeição e a arrumar um jeito de ser novamente aceita pela turma. Anna Flora transita no mundo das crianças com tamanha naturalidade que garante a identificação delas com seus personagens mais carismáticos. Foi assim com o Antônio. Quando vi, estava com os olhos rasos d'água e o nariz todo vermelho. Continuei a leitura e, como ele continuou embargado, resolvi perguntar se estava chorando. Foi o meu erro. Na cama ao lado, estava o Pedro, prestando uma disfarçada atenção na história, que logo aproveitou a deixa para implicar com o irmão. A zoação foi tanta que a emoção do Antônio logo se misturou à raiva, aquela de quem foi pilhado em um momento de fragilidade, e a confusão começou. Foram alguns minutos em que os conflitos da menina e do louco com os garotos da turma deram lugar à briga dos meus dois meninos. A coisa só se resolveu depois de eu ameaçar colocar o Pedro para fora do quarto para o Antônio poder ouvir a história, que sei, também estava encantando o mais velho. Um encantamento que não veio de graça. A narrativa de Anna Flora consegue traduzir as emoções da menina e de seu novo amigo sem pieguismos, de forma a envolver o leitor de qualquer idade na história. O conto, editado em 1994, é anterior ao grande debate sobre o bullying, mas estrutura-se em cima da zoação de um grupo de crianças com o Guardinha Louco, que acaba sendo incorporado à turma. A maior qualidade do livro, no entanto, não é falar de um tema que hoje preocupa pais e professores, mas falar dele com a linguagem e o imaginário da infância. As ilustrações de Mia ajudam ainda mais a envolver a criança na história, servindo como mais um elemento narrativo para a criança acompanhar as tentativas da menina e do louco de vencer os preconceitos dos meninos da turma, nas quase 30 páginas do livro. Assim, ouvindo a história e vendo as ilustrações de Mia, o Antônio foi curtindo o livro, se emocionando e me deixando curiosa para saber aonde foi que Anna Flora fisgou meu filho. Ele, que é um menino cheio de amigos, fez uma viagem até o outro que, pelo que pude perceber em seus olhos rasos d'água e nariz vermelho, foi emocionante. A viagem do Pedro, como não podia deixar de ser nesse momento da adolescência, lhe causou um certo mal estar que gerou toda aquela inquietação. Mas é isso mesmo. Só experimentando as emoções é que poderemos um dia saber conviver com elas. 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Sobre o paraíso prometido a todas as mães

Mexendo na estante dos meninos, encontrei Bililico, um livro que eu e o Antônio curtimos muito, quando ele era bebê. Escrito a três mãos por Denize Carvalho, Sonia Dreyfus e Eva Furnari, que também assina a ilustração, ele conta a história de Bi e Bililico, que, como todas as mães e filhos, se amam e, em vários momentos, se perdem. Bi é uma mãe grandona, nariguda e generosa e seu filho Bililico, um bebê pequenino, fofo e desprotegido. Os  dois vivem uma aventura que mexe com suas emoções. Bililico, pulando na cama, acaba sendo capturado por uma ave. Lá do alto, ele despenca na copa de uma flor e, assustado, sem saber como sair dali, cai no sono depois de muito chorar. A mãe, por sua vez, está nervosa procurando o filho. Procura de cá, procura de lá e nada. Ela chora, chora muito o desaparecimento de seu filho. Mas é a tristeza dela que o salva. Bi navega pelo rio de lágrimas que sua mãe verte e na foz a encontra, grande e generosa, para acolhe-lo. Um reencontro cheio de alegrias e ansiedades, assim como é a relação de uma mãe e com seus filhos. A história é contada com a beleza e o humor das ilustrações de Eva Furnari e a delicadeza de um texto de quem sabe das emoções de mãe e filho e do medo de ambos de perderem-se um do outro. Uma narrativa envolvente e encantadora que faz aumentar a crença das crianças no poder de acolhimento de seus cuidadores e dos adultos, nos ganhos que a relação com elas lhes dá. Com certeza, é uma bela leitura para aproximar mães e filhos. Mas, confesso que nesse momento, só me fez lembrar da polêmica nascida de uma brincadeira no facebook sobre o prazer de ser mãe. Mulheres de todas as idades e com número variado de filhos foram convidadas a postar três fotos que descrevessem o seu prazer de ser mãe. Do desafio resultou uma série de lindas fotos, em que mulheres sozinhas ou acompanhadas desfrutavam da companhia dos filhos, mas também no desabafo de uma jovem de 25 anos, recém-mãe, que expôs seu mal estar com maternidade: "Quero deixar bem claro que amo meu filho, mas odeio ser mãe." A declaração, vamos combinar, não é usual na nossa cultura católica e machista, em que os casais devem ter filhos e as mulheres cuidarem deles. Mas é legítima. Gostar de ser mãe e amar a criança são realmente coisas diferentes, mas que não deveriam coexistir. Deveriam ter filhos apenas mulheres e homens que gostassem de ser mães e pais e acreditassem nos ganhos de uma relação com uma criança. Mas isso acaba não acontecendo em uma cultura que praticamente impõe aos adultos essa experiência, como se fizesse parte do ciclo da vida ou fosse mais um troféu narcísico. Se ter filhos fosse uma opção apenas de quem quer de fato tê-los - com todas as perdas e ganhos decorrentes deles -, não estaríamos discutindo se é um prazer criá-los, mas, sim, como cuidar deles em uma sociedade que empurra mulheres e homens para a rua em busca de oportunidades de trabalhado, lazer, sexo e amor. A maternidade não deveria estar em xeque, mas, sim, a convenção social que faz das mulheres as únicas responsáveis pelas crianças. Deveríamos, em vez de engrossarmos a mais nova modinha dos círculos de classe média - de que é duro ser mãe e o que nos salva é o amor - cobrar que os homens assumam a paternidade, se sentindo responsáveis pela educação dos filhos, como as mulheres historicamente o são, e o Estado crie condições para que pais e mães possam criar seus filhos e se manterem produtivos. Uma responsabilidade que deve ser abraçada pelos dois e que, no dia a dia, é muito desgastante e faz muitas mulheres, assim como a maioria dos homens, rejeitar o papel de cuidar e orientar suas crianças e adolescentes e dar-se por satisfeitas com o amor que sentem pelos eles. Amor inquestionável, certo, mas sempre restará uma pergunta: quem vai criar nossos filhos? Empregadas, babás, avós, vizinhas?  Há quem diga que tem sido assim, desde que o Brasil é Brasil. Quantas mães da elite e da classe média se encarregam de cuidar pessoalmente de seus filhos? É verdade também que esta omissão nem sempre é uma opção delas. Escolher dedicar-se mais a eles nos primeiros anos de vida - deixando temporariamente o mercado ou reduzindo sua jornada de trabalho - é um luxo que poucas mulheres podem ter. Um luxo que não sai de graça, em uma sociedade que desqualifica a maternidade diante do trabalho. Mulher que tem seu lugar no mundo o encontra fora de casa, no mercado e nunca entre fraldas e mamadeiras. Filhos, infelizmente, viraram âncoras que tiram mulheres talentosas e promissoras do mercado de trabalho, de consumo e do sexo e da, cada vez mais, frenética vida social.  É quase consenso por aqui que filhos limitam a vida das mulheres e dos homens que os assumem. Pois é deste sentimento que se originam os conflitos, as dívidas, enfim, a certeza de perda que está fazendo mulheres de várias idades reeditarem a máxima “ser mãe é padecer no paraíso”. A diferença agora é que as mulheres modernas, moderníssimas, que foram educadas não apenas para trabalhar, mas, sobretudo, para ter atitude, não têm mais paraíso a conquistar. O amor que os filhos têm a oferecer lhes parece pouco. A contabilidade que faz a maternidade e a paternidade ser um mau negócio é lembrada a todos pela vida interessante de quem não tem filho nas redes sociais. Do paraíso que consolava nossas mães e avós, como a mãe de Bililico - o prazer de criar filhos, orientá-los e vê-los crescer - sobrou pouco ou quase nada. Não são poucas as pessoas que duvidam que a maternidade - sobre a paternidade nem se fala - pode ser uma realização pessoal. O mundo promete às mulheres muito mais e as empurra para gastar seu tempo cuidando de si e do corpo, investindo em sua formação profissional, divertindo-se, viajando e muito mais. Não há porque abrir mão disso tudo por crianças que um dia as deixarão mais gordas e frustradas do que aquelas que recusaram esse papel. O resultado desse conflito, que martiriza mulheres e homens que se vêm diante do verdadeiro desafio da maternidade e da paternidade, tem sido perverso com todos: pais e filhos. Por isso, Bi e Bililico mexeram tanto comigo nesses dias. Lembrar da certeza de meus filhos de que eu e o pai deles somos um porto seguro em suas vidas e apostar que um dia partirão para a vida sem nós, me faz ficar mais perto do paraíso que foi prometido a tantas e tantas mulheres antes de mim. Desta esperança é que me alimento todos os dias. Afinal, eu amo ser mãe.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

A arte é uma coisa de tripa

Eu amei a Espanha. Passei pouco tempo em Madri e em Barcelona, mas o suficiente para me fazer lembrar com frequência daquela terra, que, como descreve João Cabral de Melo Neto, "é coisa de tripa". Uma das coisas que mais me encantou por lá foram os vários museus que guardam a memória de pintores modernos espanhóis que assombraram o século XX com seu talento e ousadia. Em Madri, o Prado é um esplendor, com os clássicos que provocaram os modernos a tomarem outro caminho. O Reina Sofia, um escândalo, com Guernica e outras obras que remontam a primeira metade do espetacular século XX. E Barcelona? Nos dá o Museu Picasso e o Museu Miró para não nos deixar esquecer da inquietude com que os modernos viam o mundo. Eles, nos museus da Espanha, ganham novo corpo, ao termos diante de nós o ambiente histórico e artístico em que se formaram. As tensões de um capitalismo ainda frágil com o mundo da tradição, as guerras, o fascismo, as vanguardas artísticas e o triunfo do modernismo sobre o conservadorismo do classicismo. Toda essa tensão foi o caldo de cultura para o surgimento da beleza que a virada do século XIX para o XX nos deixou, o que reforça minha crença de que o desconforto é mesmo necessário à criação artística e me faz arriscar a dizer, parafraseando João Cabral, que a arte é uma coisa de tripa. É esse desconforto que fica claro no livro O pássaro na gaiola, do premiado ilustrador espanhol Javier Zabala, editado pela Pequena Zahar, que reproduz uma das cartas do pintor holandês Vincent Van Gogh para seu irmão Théo. Van Gogh morreu pobre, sem o reconhecimento de sua genialidade, e atormentado. Ele se suicidou aos 37 anos depois de uma série de surtos psicóticos, que o fizeram até cortar uma de suas orelhas. Sua vida trágica, em que conseguiu vender apenas uma das 800 obras que produziu, alimenta a mística em torno das relações entre genialidade artística e loucura e faz dele um personagem fascinante que falou muito de si em “Cartas para Théo”. Van Gogh fala, como em uma parábola, sobre seus sentimentos através da história de um pássaro preso em uma gaiola que implora por liberdade e autonomia. Ele se lamenta de não vencer as dificuldades de sua vida e de ser sustentado pelo irmão. No fim, liricamente, fala do amor que os une. O sentimento de impotência que atormenta o pintor é captado com sensibilidade pelo ilustrador espanhol, que trabalhou quatro anos nesse projeto, e expresso com o requinte de uma sofisticada ilustração que consegue refletir o mundo interior em que Van Gogh se sentia preso. As ilustrações são tão bonitas que mereceram, em 2014, uma exposição no Museu de Desenho e Ilustração de Madri, que, por desconhecê-lo não o visitei. Lá o público pode apreciar, além dos originais, todo o processo de criação do livro. Zabala usou técnicas como colagem, aquarela, tintas, acrílicos e monotipias para traduzir a angústia de Van Gogh. O resultado é uma obra delicada que, além de nos educar o olhar, nos apresenta um pouco mais de um dos mais importantes pintores modernistas. A edição é um presente para jovens leitores, que tem tudo para agradar também a leitores maduros e mais uma mostra de que a Espanha é mesmo "uma coisa de tripa". "A Espanha está nessa cintura/que o toureiro oferece ao touro,/e que é de donde o andaluz sabe/fazer subir seu cantar tenso,/a expressão, explosão, de tudo/que se faz na beira do extremo." Zabala, com seu livro, nos faz lembrar que é da ausência desse extremo que nosso tempo se ressente. Só me resta pedir, que a história tenha piedade de nós!

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Sobre o uso das telas, excessos e limites

As férias escolares não têm sido um tempo fácil aqui em casa. Depois de uma espera de quase um ano, os meninos ganharam o tão desejado PS 4, que tem feito a minha desgraça nesses dias que ficam entre o Natal e a volta às aulas. Eles jogam todo e quase todo o dia, brigam pela divisão do tempo e só desgrudam do console quando vamos ao clube ou à praia. Mas nem isso tem sido fácil aqui no Rio, que está passando um verão úmido, com dias nublados ou chuvosos que se estranham com as opções de lazer dessa cidade. Então, não há mais desculpas para não jogar Play Station. "Estamos de férias e férias é um tempo para dormir tarde e fazer o que se quiser." Esse é o discurso quase decorado dos dois, que têm ido dormir já de madrugada. O resultado é que, no dia seguinte, não há rotina, o que complica muito para mim e para meu marido. A solução tem sido confiscar os controles e os dispositivos digitais na hora que vamos dormir e deixá-los em ter o que fazer na madrugada. Isso tem nos garantido silêncio na hora de dormir e um pouco de paz de espírito e mais horas de sono para essas crianças boêmias. O Antônio, que sempre gostou de um aconchego e uma história à noite, passa dias sem ler um livro e sem pedir para ser embalado por nossos carinhos. O Pedro, se deixar, dorme às cinco da manhã consumido por jogos e conversas on line com os amigos. Uma realidade de assustar que me fez tomar uma decisão: em dias de aula, o PS 4 só sairá do armário em horas determinadas e nos fins de semana. Uma medida radical para garantir que o mais velho, já no nono ano do fundamental, estude e o mais novo brinque com seus amigos. Brincar de verdade. Aquelas brincadeiras de bola, que causam atritos corporais e verbais e que fazem a alegria de qualquer molecote de oito anos. Mas não basta guardar o PS 4, é preciso ainda impedir o uso do celular do IPod do IPed, da TV e da Netflix. Um desafio e tanto, que nos faz pensar em como limitar o uso desses dispositivos em um mundo totalmente conectado, como o que vivemos. Quanto tempo de nosso dia nós, adultos, passamos no celular, no computador ou usando outros dispositivos eletrônicos? Não sei ao certo, mas muito e, com certeza, o suficiente para nossas crianças nos imitarmos. Quando nos damos conta de como esse mundo digital nos consome, vemos o quanto perdemos do tempo antes dedicado aos momentos de solidão, de leitura, de reflexão, de organização de nossa casa, armário, escrivaninha ou de lazer, simplesmente lazer. Quantas vezes vamos ao cinema e flagramos alguém navegando na internet durante o filme? Quantas vezes nos desligamos de uma conversa real para nos conectarmos em uma conversa virtual? E nossos filhos, quantas vezes nos veem ignorá-los para rir de piadas batidas que circulam pelo facebook ou outras redes? Tantas, tantas e tantas que já não é raro ver um amigo anunciar que vai dar um tempo do facebook. E o Whatsapp? Esse é o pior, com seu apito a toda hora nos tirando a atenção de nossas tarefas, conversas, leituras, filmes ou qualquer outra atividade da vida. Mas também é preciso admitir que desligar todos esses dispositivos não é a solução para quem está no mundo produtivo, em que a circulação de informações se impõe como uma rotina necessária. O que precisamos encontrar é o equilíbrio. Estar no mundo digital, sem tirar o pé do mundo real. Esse tem sido meu desafio nos últimos anos, mas, confesso, que nem sempre estou no comando desse jogo. Agora, por exemplo, é um momento em que estou vencida pelo mundo do áudio-visual. Só não estou mais porque o Antônio está em um sítio cheio de amigos, onde não há nem mesmo telefone. Mas a trégua dura pouco. Ele chega hoje e já estou antevendo meus dois meninos grudados nas telas para passar estes dias que restam das férias, o que me faz lembrar um livro da argentina Isol. Intercâmbio cultural, editado pela Fondo de Cultura Economicaconta a história de um menino viciado em TV que troca de lugar com um elefante africano. Enquanto o menino vive aventuras reais, o elefante vai sendo abduzido pela TV. As semelhanças com a realidade, vividas por personagens tão bizarros, faz do livro um encantador lembrete de que não podemos desligar o alerta nunca, sob pena de nossos filhos se transformarem em mais um elefante hipnotizado pela TV.