terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A ira também ataca os poetas

A poesia foi a porta que me levou à literatura. Ela se abriu para mim nas aulas de Literatura, na escola, que, na minha época, mais afastavam da leitura do que aproximavam. Para minha sorte, esbarrei com Castro Alves, que me pegou pela mão e me convidou para a leitura. Como amei o estilo romântico e engajado do poeta baiano! Amei ainda mais a descoberta de que a língua poderia me apresentar tantas surpresas. Depois de Castro Alves vieram outros poetas, sempre brasileiros, que aprendi a amar. João Cabral de Melo Neto foi a maior de todas minhas surpresas. Uma poesia dura como a pedra, que soava estranha, mas falava direto para mim. Nem toda a poesia me agrada, nem todo o poeta é meu par, mas quando este encontro se dá, é o melhor, o mais forte. Por isso, minha felicidade em ver o prazer do Antônio explorando os poemas de A arca de Noé, do maravilhoso Vinícius de Moraes, editados pela Companhia das Letrinhas e ilustrado por Laurabeatriz. Mais de uma vez pegamos o livro e lemos os 32 poemas. Digo lemos, porque o Antônio leu alguns ou releu outros, com uma animação tão grande que contagiou o Pedro, na cama ao lado, fazendo ele se juntar a nós. É claro que temos alguns preferidos, na maior parte das vezes, os que exploram o humor, como O vento, O pato e a A casa. É lógico também que há um lugar especial para O leão e sua fúria poética, assim como para As borboletas, descobertas pelo Antônio em seu caderno de poesias preparado pela escola. Uma descoberta que levou a outra, desta vez, dada por uma amiga querida, Maria de Moraes, que herdou do pai o gosto pela palavra, em um depoimento sobre as agruras do poeta ao tentar escrever um poema para a borboleta amarela. Uma história deliciosa que encantou o Antônio e o fez saber que a ira também ataca os poetas. Vale conhecer o texto da Maria, que reproduzo a seguir. Como diz a pulga, de Vinícius, "Tchau/ Good bye/ Auf Wiedersehen".

“As pessoas adoram e pedem mais e mais histórias; então, lá vai uma bonitinha, de família, que minha amada mãe, Christina Gurjão, me contava sempre rindo. Papai queria porque queria fazer um poema para a Borboleta Amarela. Sentado na cadeira, em frente a sua escrivaninha, máquina de escrever, tec, tec, tec, não gostava, tirava o papel da máquina e amassava o papel em bolinha, jogado no chão, insatisfeito, na busca da poesia. Tarde da noite, mamãe fora dormir, sem ainda ele ter saído da cadeira, tec, tec, tec, silêncio, barulho de papel amassado. Deu-lhe um beijo e, ainda na cama, antes de ferrar no sono, os mesmos barulhinhos, tec, tec, tec, e de papel amassado. Diz que despertou, o dia amanhecendo, com papai indo dormir. Ainda ficou um tempo na cama, mas logo se levantou, já curiosa para ver que poema lindo haveria saído depois de tanto tec, tec, tec. Na sala, um mar de bolinhas amassadas, muitas no chão, e, na máquina de escrever, um papel, que ela foi ler, com o título A Borboleta Amarela, e abaixo escrito: A Borboleta Amarela – Merda pra ela!”

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Uma bela história, sem título e com muitas possibilidades

Tem um bom tempo que não passo por aqui. Um tempo de férias, que me serviu para descansar e reorganizar a vida. Um tempo também de ausência. Mas uma ausência vivida com a tranquilidade dada pela certeza de que eu sempre posso voltar. Este sofá é um lugar de afeto que construí na vida e que está sempre arrumadinho para mim e minhas histórias. É tão bom saber disso, tanto que estou aqui novamente, buscando seu aconchego. Um aconchego que não me cobra nada. Aqui não preciso ter certezas e posso me alimentar apenas de possibilidades, assim como Hervé Tullet fez com o seu Sem título, editado pela Companhia das Letrinhas. Pelo título ou ausência dele já é possível perceber que o francês não criou um livro comum. Ele nos propôs um livro aberto, em que o leitor é sujeito da narrativa e ele, autor, é surpreendido pelo olhar de cobrança de quem esperava uma história tradicional. Hervé não cede e nos dá apenas os personagens, premidos a se apresentar pela urgência do leitor, e muitas lacunas. Na falta do autor, a história vira uma grande confusão e os personagens vão se virando como podem para dar um significado ao caos. E nós, leitores, temos que encontrar um lugar nesta bagunça. Nada confortável para um pequeno leitor, sei disso. O Antônio reagiu logo, querendo deixar o livro de lado. Eu insisti certa de que a confusão e a insegurança não são confortáveis para ninguém, mas que nela podemos enxergar grandes possibilidades e construir belas histórias. Diante de minha insistência, o Antônio foi cedendo, se abrindo para esta nova possibilidade e interagindo com o livro. Uma interação que Hervé garante sem qualquer artifício. O livro não tem dobraduras, texturas ou sons, tem apenas provocação. A interação de Hervé com o pequeno leitor se dá pela imaginação. O Antônio, depois de ganho pela brincadeira, leu o livro várias vezes e conversou com os personagens, reclamou das soluções dadas por eles, cobrou mais histórias, enfim exerceu ativamente o seu papel de leitor. Um leitor exigente que soube, mesmo no caos, tirar prazer do diálogo travado com o livro. Uma bela história, sem título, com muitas possibilidades e a promessa de que, se quisermos, podemos construir um final feliz.