sábado, 30 de março de 2013

A fantasia para burlar o não

Acho que não há pai e mãe que não se pergunte quais são os limites que devem impor a seus filhos. Dizer não quase sempre nos parece cruel e uma maneira de massacrar nossas crianças. Nos lembramos de nossas frustrações e de mães, pais e professores que, com seus nãos, nos impediram de viver milhões de coisas. Mas quase nunca nos lembramos de como encontramos na imaginação manhas e maneiras de lidarmos com esses nãos e de que, assim, eles não nos impediram de viver. É isso que a escritora colombiana Yolanda Reyes parece nos dizer em É terminantemente proibido!, editado pela FTD, com expressivas ilustrações de sua compatriota Olga Cuéllar. Uma menina da quinta série nos conta uma extraordinária história de uma árvore de chicletes que nasce nos fundos da escola, depois que os os alunos, proibidos de comê-los, jogam seus restos pela janela. As gomas mascadas frutificam e fazem crescer uma árvore frondosa e pesada de chicletes, que acabariam por cair sobre a escola como um pequeno dilúvio. Uma história engenhosa que divertiu o Pedro e o Antônio, também proibidos de chupar chicletes na escola, com a existência uma enorme árvore que transforme o não em um universo rico de possibilidades. A fantasia na história de Yolanda aparece como forma de a criança apoderar-se da realidade para, assim, elaborar o desejo negado. Fantasia que não nega a realidade, repleta de nãos e que se impõe no fim da história, mas que cria um mecanismo que transforma a frustração em novas possibilidades. A fantasia, nos ensina Yolanda, escritora que trouxe da sala de aula muitas de suas temáticas, é uma bela burla do interdito. Burla que nos permite reelaborar nos limites da realidade os nãos que ouvimos na vida. Yolanda fala para as crianças, mas faz com que nós adultos nos lembremos de como fazíamos isso e o quão divertido era burlar o não com a fantasia. A felicidade dos meus filhos diante da árvore de chicletes me fez ter certeza de que este mecanismo é essencial para nos impedir de cultivar rancores, diante de todos os nãos que, mesmo sem a gente perceber, nos ajudam a traçar nosso Norte e os limites em que nos movemos na vida. Ao fim do livro de Yolanda, só posso desejar que muitas árvores de chicletes floresceram no quintal dos meus filhos.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Para gostar de ler

Lembro bem do primeiro livro que li sozinha. Eu devia ter uns oito anos e decidi ler a trilogia da Condessa de Ségur, que reúne As Férias, As meninas exemplares e Os Desastres de Sofia. Decidi não sei se é bem o verbo. Acho que minha mãe me ofereceu estes livros, da mesma forma que a  mãe dela havia feito cerca de 20 anos antes. Li os livros com o vagar dos recém-alfabetizados e com o compromisso de quem sabia que esperavam que eu os terminasse. O intervalo entre a primeira e a última página acho que foi maior do que um ano, mas eu cheguei lá. Até hoje lembro da minha animação com Sofia, que, apesar de ser a menos exemplar das três meninas, não devia ser nenhuma subversiva a se contar com a origem aristocrática da autora russa. Depois deles, já um pouco mais velha, li Pollyanna e Pollyanna Moça, da americana Eleanor H. Porter, com seu jogo do contente que faz a protagonista se resignar com todas as agruras da vida. Literatura para moças que mais tarde seriam boas esposas. boas mães e boas senhoras da sociedade. Parece velho isso, né? Mas foi  a literatura que me foi apresentada ainda criança. Minha mãe, filha de uma família da aristocracia carioca, que vinha perdendo posições com o aburguesamento do país e da cidade, me educava na virada dos anos 60 para o 70 com valores da elite do início do século. Mas era o raiar dos anos 70 e na minha casa, por razões outras, estes raios de sol também brilhavam. A mulher, dizia meu pai, mais no discurso do que na prática, tinha que ser independente, intelectualizada e livre. Apesar disso, minha educação seguia tradicional, com algumas brechas que me davam novas possibilidades e faziam com que meus pais tivessem certeza de que estavam educando uma mulher moderna. Eu me aproveitava dessas brechas e, sem saber direito a razão, me negava a usar as roupas comportadas, brincava como uma moleca e seguia adiante para uma adolescência mais do que conturbada. Foi a hora de me estranhar com aquele mundo. Esmalte colorido? Nem pensar. Pentear o cabelo? Pra quê? Sandália de salto? Muito desconfortável. Conversa de salão? O que eu falo? Foi então que caiu nas minhas mãos, quando a biblioteca do meu avô foi desmontada, uma coleção de livros do Érico Veríssimo. Eu os havia pedido para meu avó, talvez por eles serem os mais atraentes das estantes repletas de títulos em francês e coleções de autores clássicos que, naqueles dias, me lembravam a chatice dos livros adotados pela escola. A escola que frequentei é um capítulo a parte. O que havia de mais interessante nela era a coleção Para gostar de ler, da Editora Ática, que reunia deliciosas crônicas de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga e Carlos Drummond de Andrade. Eu adorava as histórias, que me repunham o ar na travessia de narrativas rococós de José de Alencar e companhia, adotadas nas aulas de Português. Quase 40 anos depois, fico feliz em ver o Pedro lendo, na escola, estas crônicas e encontrando encanto nelas. Mas voltando à estante do meu avô, Érico Veríssimo me deu, naqueles dias de sofrimento de adolescente, liga com o mundo. Comecei por Clarissa e li num só fôlego os seis romances em que o autor narra as aventuras e desventuras de um grupo de personagens que se cruzam nestas narrativas. Mas foi em Vasco, o primo por quem Clarissa se apaixona, que encontrei alguém que falasse a minha língua. Vasco, um gaúcho comunista, que vai lutar como voluntário na Guerra Civil Espanhola, animou minha imaginação romântica naqueles dias dos primeiros namorados. Eu queria um Vasco na minha vida, assim como Clarissa o tinha. O universo humanista de Veríssimo me mostrou um mundo maior e mais arriscado do que o das Meninas Exemplares, mas muito mais interessante. Cresci junto com Veríssimo, explorando as muitas possibilidades de sua literatura e de seus personagens. Cresci longe dos infanto-juvenis que encheram as livrarias naqueles anos 70 e formaram tantas gerações mais novas do que a minha, com uma literatura que falava a língua das crianças e dos adolescentes. Eu não tive isso, mas encontrei a minha língua em gente mais velha do que eu, como Vasco. Uma língua universal que não é indiferente a nada do que é humano, a literatura.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Uma história em círculos

Le petit Chaperon Rouge me impressionou no momento que o vi, ainda nas mãos da Sônia Monnerat, minha professora na especialização da UFF. Nunca tinha ouvido falar nele ou em sua autora, a suíça Warja Lavater, nascida em 1913 e falecida em 2007, três anos antes de eu conhecer sua mais popular obra. A obra é impressionante e mostra como é ilimitada a criatividade humana e sua capacidade de recriar a linguagem, além de ser um livro-objeto belíssimo.
Lavater conta a história de Charles Perrault, incorporando o caçador da versão dos irmãos Grimm,  com apenas 16 palavras, usadas nas legendas dos círculos coloridos que representam as personagens e o cenário da história. No mais, apenas grafismos. Grafismos que nos permitem acompanhar a trajetória de Chapeuzinho, seu encontro com o lobo e o desfecho da história em uma bela narrativa não verbal. Ele é o primeiro de uma série de cinco contos tradicionais recontados pela artista em livros de imagens. Além de Chapeuzinho, Lavater recontou com suas tintas A Branca de Neve, Cinderela, O Pequeno Polegar e A Bela Adormecida. Infelizmente só conheço o primeiro. Mesmo assim foi um encontro fortuito. O vi naquele dia e nunca mais. Mas foi um encontro que me marcou. Marcou tanto, que, hoje, quase três anos depois de vê-lo ainda sou capaz de descrever meu espanto ao ver aberto diante de mim uma tira de papel de 4,74 metros, plissada e gravada com litografias. Como uma menina apaixonada no primeiro encontro, procurei o objeto de meu desejo por muito tempo sem encontrá-lo.
Editado inicialmente pelo Moma, ganhou edição popular na francesa Galerie Maeght, e nunca chegou ao Brasil. Popular não é bem o termo. Cada um deles custa 45,00 €. Já sei o que vou pedir para a minha prima trazer de Paris. Au revoir les enfants.