segunda-feira, 25 de abril de 2011

O tempo e a prosa de Bartolomeu

Bartolomeu Campos de Queirós mais uma vez recorre à memória para compor uma bela história sobre o passar da vida. Desta vez, seu protagonista é o próprio tempo, que traz em si a vida e a morte.  Em Tempo de voo, editado pela Comboio de Corda, das Edições SM, o autor mineiro usa sua prosa poética para criar um belo diálogo entre um homem e uma criança. As inquietações dos dois, como o infinito, unem o início e o fim na mesma perplexidade diante da passagem do tempo. 
As perguntas do menino se sucedem às explicações do homem, que aos poucos revela os mistérios do tempo em uma linguagem que expressa a generosidade do velho diante do novo.  “O que é tolerância?”, pergunta o menino, que ouve do homem que é “gostar das coisas mesmo sabendo que elas não são como eu quero”. E conclui, paciente: “Aprendi com o tempo”. 
A delicadeza do diálogo do homem com o menino traz em si uma preciosidade. A serenidade do homem diante da consciência de que o tempo não pára e que está caminhando para seu fim. “Hoje, ele é curto e demanda cuidados”, diz o narrador, diante da infância de seu interlocutor. Esta serenidade empresta uma grandeza ao personagem, que, desta forma, se aproxima dos anciões das sociedades tradicionais em que valores eram transmitidos no diálogo entre jovens e velhos.
A história do diálogo do homem com o menino ainda tem como mérito o fato de trazer em sua narativa as marcas do tempo na prosa de Bartolomeu. Marcas que se equivalem aos risquinhos no rosto do narrador e dão legitimidade a um discurso quase que filosófico sobre o tempo. A riqueza desta prosa valeu dois importantes prêmios para Tempo de voo: o Glória Pondé, concedido pela Biblioteca Nacional a obras infantis e juvenis, e  Jovem Hors-Concours da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil.
Toda esta riqueza se potencializa no encontro com as ilustrações do espanhol Alfonso Ruano. O ilustrador busca inspiração em seus compatriotas surrealistas, da vanguarda do início do século XX, para compor as ilustrações que, prenhes de significados, traduzem com inspiração as inquietações do homem de Bartolomeu diante do tempo. Belas ilustrações para valorizar uma leitura que vale a pena ser feita por jovens ou não tão jovens que queiram abrir um diálogo interior com suas memórias ou com as possibilidades de seu porvir.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A tradição na literatura de Ana Maria Machado

Há muito tempo estou para falar aqui das narrativas da tradição oral que ganharam registros de diversos autores. Contos de fadas, fábulas, aventuras fantásticas do tempo que os animais falavam, histórias de nossa floresta, enfim, as narrativas que passam de geração em geração e ganham um ponto a cada nova versão e encantam a todos nós, adultos ou crianças. Muitas vezes essas narrativas são vistas como literatura menor e desprezadas na hora de se escolher um livro. Mas, vamos combinar, não há coisa melhor do que ouvir uma bela história de macaco ou de onça; de leão e ratinho; de jacaré; e de bruxas, princesas e seres fantásticos. Por isso, toda vez que posso compro um novo exemplar de histórias tradicionais. Mais legal ainda é que estas histórias ganham roupa nova dependendo do autor que as conte. Ana Maria Machado nos presenteou com várias delas na coleção Histórias à Brasileira, editada pela Companhia das Letrinhas e delicadamente ilustradas por Odilon Moraes. Ela nos apresenta um cardápio variado de histórias nos quatro volumes da coleção que vão desde as do folclore caboclo até as de tradição européia. Eu e o Pedro não nos cansamos de ler e o Antônio começa a ser iniciado. O primeiro volume então, o preferido do meu filho mais velho, nos fez companhia em várias noites em que lemos com prazer as histórias O veado e a onça e Bicho folhagem. Eu adoro outras, como Dona Baratinha, A Festa no Céu e o Boneco de Piche, algumas das histórias que entraram na minha vida pelos disquinhos coloridos de Braguinha. Nada melhor do que os sapinhos da Festa no Céu cantando "Quatro com quatro, quatro, com mais quatro, quatro" e o mestre sapo corrigindo: "Tá errado!". A prosa de Ana Maria e o respeito que ela tem por estas histórias, na maioria recolhidas por Câmara Cascudo de nossa tradição oral, já valem os livros que, por todas estas qualidades, ganharam o selo de Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. "Que as crianças de hoje descubram o fascínio de voltar muitas e muitas vezes a estas histórias incomparáveis, fruto da sabedoria popular acumulada em geração de narradores anônimos que coletivamente foram criando esse fastástico patrimônio que nos coube de herança e não tem preço", diz a premiada autora, dona da cadeira número 1 da Academia Brasileira de Letras devido à sua dedicação à literatura infantil e juvenil. Que nos venham outras.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Para vencer os medos e angústias do mundo real

A noite de ontem foi longa aqui em casa. Depois que o Antônio dormiu, vencido pelo sono e aninhado em seu travesseiro, o Pedro me pediu para ler Ozzy, o quadrinho maravilhoso do Angeli, publicado na Folhinha, da Folha de São, que ganhou quatro títulos da Companhia das Letrinhas. O Ozzy foi uma escolha do próprio Pedro que o catou na biblioteca da escola e o trouxe feliz da vida para casa. Realmente é um personagem cativante, que retrata com humor os meninos de sua idade, e que fez o meu exclamar maravilhado que eles eram igualzinhos. O humor de Angeli, no entanto, não foi capaz de fazer o Pedro relaxar para dormir. Assim que apaguei a luz, ele falou que estava com medo do que poderia sonhar. Me contou que sonha muito com tubarões o atacando, que não consegue se defender dos perigos de seus terríveis sonhos e que não tem medo quando está acordado. Eu falei de meus sonhos de criança, em que ondas enormes me ameaçavam, explicando que estes perigos muitas vezes representam nossos medos e impotências. "Quando entendi isso, nunca mais sonhei com as ondas", expliquei. Mas não bastou. O medo dele era muito mais concreto. Na verdade, estava angustiado com a descoberta de que há muita maldade no mundo. A primeira delas foi um vídeo em inglês achado na internet sobre a notícia da prisão de um pedófilo que se travestia de Justin Bieber para atrair suas vítimas. "Mãe me leva ao médico para ele tirar isso da minha cabeça", pediu angustiado, sem entender direito a notícia. A outra foi a crueldade do massacre na Escola Municipal Tasso de Oliveira, em Realengo, que chocou a todos nós. Ele soube da tragédia sem muitos detalhes, por um colega da escola, que assistia a um programa de esportes quando foi surpreendido por notícias da barbárie. "O que você soube disso, Pedro?", perguntei para um menino, que estava até nauseado de tanto medo e angústia. "Quase nada, mãe. Não me lembro nem mais do nome dele", falou. Mas, em sua angústia, deixou transparecer que sabia muito mais do que poderia suportar. Sabia que Wellington havia estudado na escola que invadira armado, que matara vários alunos e que se suicidara. "Como alguém pode entrar armado em uma escola?", indagou. Eu, diante de tantas perguntas e angústia, me perguntei como falar de tanta dor, maldade e loucura para uma criança de apenas nove anos. Me perguntei ainda como podia proteger meus filhos de tanta informação, que vem de tantos lados, sem qualquer filtro ou limite ético para salvaguardar nossas crianças. Não podia subestimar a inteligência dele e negar o que era óbvio, mas também não queria aumentar ainda mais sua perplexidade diante da descoberta de que a vida pode ser cruel. Só podia dar colo para meu filho, que chorava toda a sua tristeza e me falava sem parar de seus medos. A medida que ele foi se acalmando, pediu que eu não o deixasse aquela noite e que lesse para ele mais uma história. "Mãe, sabe por que eu gosto que você leia histórias para mim? Primeiro porque tenho preguiça de ler, segundo porque ouvindo histórias imagino um mundo só meu. Um mundo que ninguém pode mudar". E foi ouvindo mais uma história que o Pedro driblou seus medos e recobrou as rédeas de sua vida, podendo dormir tranquilo para mais um dia. Que os livros possam sempre lhe dar alento!

domingo, 3 de abril de 2011

Vivas para Maria Clara Machado!

Acabo de ver um anúncio no jornal em homenagem à dramaturga Maria Clara Machado, que, se viva, estaria completando hoje 90 anos. A notícia me trouxe boas lembranças. Lembranças de minha infância, tempo em que muitas vezes fui ao Tablado para assistir a algumas das 27 peças que ela escreveu para crianças. A que mais me marcou, acredito que a todos que a viram, foi Pluft, o fantasminha. Lindo fantasminha que tinha medo de gente e acaba envolvido em uma perigosa aventura com a menina Maribel, que tinha os cabelos cor de mel, e três covardes marinheiros que tentam livrá-la da perseguição do malvado Pirata Perna de Pau, interessado no tesouro do avô da criança, o Capitão Bonança. Tudo na peça é ternura. "Mamãe, a menina está botando o mar todo pelos olhos", diz um espantado Pluft ao ver Maribel chorar. Imagens como essa fizeram com que os personagens de Maria Clara Machado ficassem no imaginário de gerações e gerações de brasileiros. Quem não pôde ver Pluft no  palco do Tablado, teatro amador que ela criou em 1951, pode vê-lo na TV, em 1975, com a interpretação de Dirce Migliaccio e Norma Blum. Eu o vi no palco do Tablado e na TV e, na adolescência, interpretei-o em uma montagem amadora que eu e meus amigos fizemos no Grupo Escolar de Tebas, em Leopoldina (MG). A direção da peça foi da minha mãe e nós nos divertimos muito com o teatro, que lotou o pátio da escola de um pequeno vilarejo mineiro. A experiência me encantou tanto, que decidi naquele dia estudar teatro. Este desejo me fez assistir a muitas boas montagens de textos maravilhosos, que levavam filas à porta dos teatros do Rio, nos anos 80. Ao chegar na época do vestibular, meu desejo mudou de foco e decidi concorrer a vagas de História e Jornalismo. O tempo passou, eu abandonei a História e o Jornalismo, mudei-me para Sociologia e voltei ao Jornalismo, carreira que exerço hoje. Mas Maria Clara Machado não saiu da minha vida. Tenho até hoje o texto da peça e uma adaptação para literatura, editada nos anos 80 pelo finado Círculo do Livro. Quem for procurar hoje nas livrarias vai achar uma adaptação recente de Pluft, editada pela Nova Fronteira e ilustrada por Graça Lima. Agora, já quarentona, acompanho com atenção os letreiros do Teatro O Tablado, no Jardim Botânico, para ver as trocas de peça e levar meus filhos para ver mais uma da autora que fez o teatro infantil ter a cara do Brasil. Esta conquista, no entanto, parece ter ido para o ralo diante de uma infinidade de peças infantis que transpõem da TV para o palco personagens rasos de imaginação e sem identidade com nossas crianças. Mas não. Todas as vezes que sentamos naquela platéia, vejo que Maria Clara Machado ainda fala para a imaginação dos pequenos, mesmo que eles sejam muito diferentes do que fui. As montagens do Tablado podem ser mais pobres do que as sofisticadas peças dos teatros de shoppings, mas são imperdíveis. Por isso, levo meus filhos em todas as peças lá encenadas e continuo esperando uma nova montagem de Pluft, meu personagem preferido entre tantos desta autora brasileira, que foi traduzida para vários idiomas e montadas diversas vezes fora do Brasil. Com justiça, Maria Clara Machado recebeu mais de uma vez os prêmios Molière, Mambembe e Coca-Cola, entre muitos outros. Que se prepare uma grande homanagem a ela em seus 100 anos, que já estão por chegar.